O estranho caso do Tempo
O Tempo é de facto algo intrigante. Vivemos com ele e segundo ele, é a nossa referência imprescindível, mas no entanto não o podemos agarrar, ele é volátil e até impreciso.
Já anteriormente publiquei um post onde falava exactamente sobre este conceito que nos é tão precioso (marialynce.wordpress.com/2008/07/10/o-tempo/)
Para a percepção do conceito de Tempo muito contribuiram as perspectivas da ciência, que o definiu como qualidade do Universo, alheio a uma explicação teológica do Homem e da sua salvação.
No período barroco o Tempo aparece como o verdadeiro regente da vida humana, e deste modo, esta qualifica-se pela aparência e instabilidade. A caracterização do “sentimento da fugacidade do tempo” foi considerada a verdadeira expressão do Barroco.
A noção de Tempo encontrou expressão na arte barroca sob variadas formas: formalizado num tipo iconográfico (normalmente figurado pelo deus Cronos, da mitologia grega; ver mais), através de uma técnica pictórica apoiada numa pincelada ligeira e indefinida, pela captação de uma cena momentânea, na escolha de determinados géneros ou temas (a paisagem), ou ainda pelo auxílio de processos de ilusão espacial, e extensivamente, temporal (perspectiva, trompe l’oeil, quadratura). mas também utilizando certos temas iconográficos como os Doze Meses do Ano, os Doze Signos do Zodíaco e, o mais significativo e divulgado, as Quatro Estações.
Um aspecto fundamental para a compreensão do sentido do tema das Quatro Estações é a noção de ciclo. Esta noção está intimamente associada à definição do Tempo como rotação eterna que governa o ritmo da existência humana. Neste sentido determina o funcionamento da “Roda da Fortuna” e encontra expressão na sucessão regular dos dias e das noites, assim como pode tomar a forma de uma dança perpétua.
As Quatro Estações assim concebidas como um ciclo que se repete num esquema de eterno retorno, definem um ritmo temporal quaternário da vida acompanhando as suas etapas ou Idades da Vida Humana : Primavera (Infância), Verão (Juventude), Outono (Maturidade) e Inverno (Velhice). Estas decorrem em resultado das quatro fases do curso solar pelo qual se sucedem as Estações, e igualmente aludem ao próprio ciclo de desenvolvimento das sociedades e civilizações.
A alusão à sucessão das Quatro Idades da Vida Humana foi objecto de um emblema gravado por Otto Van Veen, o mestre de Rubens, inserido na obra “Theatro Moral de La Vida Humana” de 1607, conhecendo-se em Portugal várias edições. Do conjunto de emblemas apresentados são vários os que aludem ao Tempo, de que destaco o intitulado “Buela el tiempo irrevocable“: aqui o Tempo é interpretado através da sucessão das Estações personificadas por quatro figuras que marcham (tal como o tempo que não pára), compostas de acordo com o modelo iconográfico das Idades do Homem. A Primavera vem primeiro com um menino com folhas e flores à cintura, depois o Verão representado por um jovem coroado de espigas de trigo, segue-se o Outono com um homem adulto coroado de parras e cachos de uva e finalmente o Inverno com um ancião envolto em vestes de pano grosso, apoiado num bastão e trazendo um braseiro. O cortejo caminha acompanhado por um putto alado que segura um relógio de sol; a lua, com as suas diferentes fases em constante mudança, e a Ouroboros, a cobra egípcia que morde a própria cauda, fazem referência aos ciclos eternos do Tempo que contrastam com a breve existência humana.
Vem também a propósito deste tema, a oportunidade que tive recentemente de assistir a um filme belíssimo e surpreendente, cuja personagem principal é, afinal, esse Tempo misterioso : “O estranho caso de Benjamin Button”.
A história altera o ciclo de sucessão das Quatro Idades da Vida Humana, correspondentes às Quatro Estações, ao desenvolver-se à volta do percurso de vida do protagonista cuja peculiariedade é começar no fim: nasce com 80 anos e regride na sua idade, ou seja, o Tempo da sua vida decorre de forma invertida, tal como um relógio que começa a andar para trás (imagem determinante no filme). É um homem, como qualquer um de nós, que é incapaz de parar o Tempo.
A partir daqui todos os acontecimentos de uma vida surgem aos nossos olhos com uma estranha sensação de desconcerto e solidão. Benjamin Button, como personagem fantástica no centro da narrativa e do restante elenco de personagens “reais”, representa afinal cada um de nós ao tentarmos enganar a passagem do Tempo. A vida revela-se então um desafio ainda maior por se tratar de uma luta solitária de um contra todos, contra tudo, contra o Tempo: é que nessa caminhada constatamos que nos desencontramos do tempo dos outros que nos são próximos. E aí reside o desconcerto e a melancolia que caracteriza todo o ambiente do filme : o desenrolar da vida perde o seu sentido pois perdemos o vínculo com o outro. O nosso caminho segue outras Estações.
Apercebemo-nos também que, afinal, mesmo que o nosso corpo evolua contra o Tempo, tudo o que se vive tem um Tempo certo para ser vivido, até porque há sempre um princípio e um fim, independentemente dos “truques” que arranjemos para o inverter. E se a morte é o nosso destino então, como nos diz o filme, esse momento ficaria determinado: “se nascemos velhos e caminhamos para a nossa morte, que será quando formos um pequeno bebé, então toda a nossa vida mostra-se mais preciosa, com limite definido, e o caminho que percorremos torna-se num reconhecer de experiências, sobretudo no impacto sentido nas pessoas que vamos encontrando.” (ver mais)
A vida é um ciclo, como o ciclo das Quatro Estações do ano, estabelecido pelos momentos do nascimento e morte aos quais não podemos fugir, momentos esses que o Tempo determina.
Momentos que se vão desenrolando numa sucessão em que cada pequena escolha casual vai inevitávelmente determinar a ocorrência de outros acontecimentos e assim construir o percurso de uma vida, tal como o “bater de asas de uma borboleta” que vai acabar por provocar uma tempestade algures no mundo, como nos diz a teoria do caos e o “efeito borboleta”, a que o filme faz uma interessante alusão (assunto fascinante a que já fiz referência em posts anteriores).
Por isso o filme também nos alerta que “perdemos muito tempo a pensar no tempo que passa, demasiado presos às obrigações do tempo. ” (ver)
Afinal, o inevitável final está lá, é apenas uma questão de Tempo…
Este post é a minha participação na Tertúlia Virtual organizada pelos blogs Varal de Idéias e Expresso da Linha, todos os dias 15 de cada mês!
Marialynce,
que texto importante relacionando o tempo com as artes e seus tempos .
Post para ler e guardar! Ricamente ilustrado. Parabéns! Uma aula!
Obrigado por participar de forma tão séria e objetiva desta Tertulia!
Excelente, bem ilustrado e abrangente este seu post sobre o tempo, aliás como sigo teu blog sei que é um assunto que te inspira.
Ainda não assisti ao filme ao qual você se referiu, e estou curiosa para saber como ele ligou o tempo ao “efeito borboleta”.
Realmente, devemos viver o momento presente porque o final é certo. Aliás, os homens são os únicos seres terrestres que sabem que tem o tempo contado.
Parabéns e um ótimo domingo para você.
Viva, Mariaçynce!
“O Tempo é de facto algo intrigante. Vivemos com ele e segundo ele, é a nossa referência imprescindível, mas no entanto não o podemos agarrar, ele é volátil e até impreciso.”
E tudo fica dito.
Porquê tentar agarrá-lo, se ele é volátil e até impreciso? Porquê esta insistência do ser humano em perseguir, para aprisionar, o que não é perseguível, menos ainda aprisionável?
Talvez um dia se esclareça esse mistério…
Abraço
Ruben
Belíssima abordagem do tema.
Parabéns e bom domingo
Jorge
O efeito borboleta tira seriedade à Teoria do Caos. Deviam mudar de nome.
Gostei do post.
Está também bem ilustrado.
Belo post, marialynce. Gostei muito. Bj
Achei seu texto sensacional. Tao rico e super bem ilustrado. Deu para notar que esse tema: Tempo te fascina.
Ainda nao assisti ao filme, mas o farei logo, pois muitas pessoas dizem que é muito bom.
Belíssimo post sobre o tempo…
Que bela participação…parabéns!
Adorei seu blog.
Um grande beijo e ótimo finalzinho de Domingo pra você!
Excelente abordagem do tema. Como a arte vê o tempo e o filme do tempo invertido, que também já vi. Gostei muita da sua didática participação.
Belíssimas fotografias de azulejaria. Adorei. Gostei do post sobre o tempo.
Eduardo,
Maria Augusta,
Jorge C.Reis,
Roserouge,
Georgia,
Luis Bento,
Alma Poeta,
Expressodalinha,
Ana Paula Motta,
a todos muito obrigada pelas bonitas palavras que me deixaram nesta que foi a minha primeira participação nesta vossa colectiva, que espero poder repetir!
Ruven,
Obrigada pelo seu comentário perspicaz. Parece que é próprio do homem querer sempre saber mais para, normalmente, dominar. O tempo ultrapassa o seu entendimento por isso é tão fascinante e por isso talvez a ânsia do seu domínio.
António Oliveira,
O termo “efeito borboleta” parece associar-se a outras histórias… até ao filme com o mesmo nome. A Teoria do Caos impõe respeito mas simultâneamente fala-nos de coisas simples e naturais de um modo fantástico, como uma história de ficção. Obrigado pelas suas palavras.
Olá amiga tertúliana – permita que a trate desta forma. Desculpe a intrusão, aderi à tertúlia pela primeira vez, estou a visitar os restantes participantes. Excelente trabalho, creio que as palavras de apreço não contam, pois toda a estrutura do texto é óptima. Uma boa surpresa para mim, para além de outras que já tive. A ideia dos autores foi muito boa, da facto permite-nos conhecer pessoas e “cantinhos” diferentes. Obrigado pela atenção, espero voltar, se me permitir. Tudo de bom.
Obrigada pelas suas amáveis palavras. Espero que venha também participar nestes encontros tertulianos e desse modo contribuir com mais um diferente modo de ver os temas que vão sendo propostos. E esteja à vontade para visitar aqui este cantinho!